29 de maio de 2011

Crime coletivo

O conceito de crime coletivo no processo de escravidão, principalmente do negro africano, reflete nos estudos do jurista Fábio Konder Comparato, em artigo divulgado pelo jornal Folha de S. Paulo. Segundo Comparato, a escravidão de africanos e afro-descendentes no Brasil foi o crime coletivo de mais longa duração praticado nas Américas e um dos mais hediondos registrados na história. Foram milhões de jovens capturados durante séculos na África e conduzidos com a corda no pescoço até os portos de embarque, onde eram batizados e recebidos com ferro em brasa, a marca de seus respectivos proprietários.

Essa carga humana era acumulada no porão de tumbeiros, com menos de um metro de altura. Quando desembarcados, eram conduzidos a mercados públicos para serem arrematados em leilões, sendo que o preço de cada “peça” dependia da largura dos punhos e dos tornozelos, além de verificação da arcada dentária. A contextualização do tema traz à tona esse legado negativo do negro brasileiro, visto que aqui o processo de escravidão perdurou por mais 50 anos, bem depois de o mundo ter abolido essa prática. Após serem comprados em leilões, os escravos iam para os domínios rurais, maltrapilhos, enfrentando jornada de trabalho superior a 16 horas, sob o chicote dos feitores. O tempo de vida do escravo brasileiro nunca ultrapassou 12 anos, e a mortalidade sempre superou a natalidade, alimentando um incentivo constante ao tráfico negreiro.

O trabalho escravo fazia-se pela violência contínua. Daí a busca desesperada pela libertação, pela fuga ou suicídio. As punições ocorriam em público, geralmente pelos açoites. Era frequente aplicar a um escravo até 300 chibatadas, quando o Código Criminal do Império as limitavam ao número máximo de 50/dia. Mas em caso de entendimento de falta grave, os patrões não hesitavam em aplicar mutilações: dedos decepados, dentes quebrados e seios furados.
Havia o trauma irreversível da “desculturação”, pois os cativos eram brutalmente afastados de sua língua, costumes e tradições. Desde o embarque na África, procurava-se agrupar indivíduos de etnias diferentes, falando línguas incompreensíveis uns para com os outros. Para que pudessem se comunicar entre si, tinham que aprender a língua dos patrões, gritada pelos feitores.

Outro efeito desse crime coletivo foi a desestruturação dos laços familiares. As jovens escravas “de dentro” serviam habitualmente para saciar o impulso dos machos da casa grande, enquanto na senzala homens e mulheres viviam em alojamentos separados. O acasalamento entre escravos era tolerado para a reprodução, jamais para a constituição de uma família regular.

O resultado inevitável desse processo de exploração do ser humano foi a superposição do direito de propriedade aos deveres de parentesco, mesmo consanguíneo. O próprio Estado brasileiro contribuiu para suavizar e apagar da mente da elite dominante a culpa pela escravidão. Registros históricos da época do Império mostram que o ministro das Finanças, o advogado e jornalista Rui Barbosa, comandou a queima de papéis oficiais confirmando a existência da escravidão no Brasil. Assim, fazendeiros que adquiriram “propriedades” – ou as “peças de guiné”, como eram considerados os escravos – não tinham como acionar o Estado para rever perdas monetárias. Efeito disso ganha reflexo ainda hoje, principalmente para historiadores que se veem privados de aferir a trajetória do antepassado negro brasileiro.

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